Os deuses, cruéis quando não são ausentes, nisto foram bondosos para os homens. Deram aos que têm génio o conhecimento de o terem, mas privaram os medíocres da consciência da sua mediocridade. Por isso os ouvimos dizer tudo o que os mostra nulos e vazios, como se estivessem a dar a solução para o problema e o remédio para o mal. Afinal, no ser isto assim, talvez esteja a prova mais cruel da crueldade dos deuses: recusam a estes cegos a escuridão que lhes revelaria a cegueira, trocando-a por uma luz falsa que lhes falseia os próprios olhos.
Penso nisto muitas vezes. Penso nisto, agora, quando olho o desconcerto do mundo e o concerto que lhe querem dar os que o desconcertaram. Aquilo que mais assusta nestes dias em que tudo corre mal, ameaçando ainda correr pior nos próximos, é o rio de lugares-comuns e frases feitas que, a toda a hora, desagua sobre nós. Passámos ao regime de verdade fundado na "tautologia ontológica", aquele que garante a glória de quem diz, com voz profunda: "O mundo é o mundo", "Uma crise é uma crise", "A economia é a economia", "A Europa é a Europa", "Portugal é Portugal". Ou que louva a imaginação e a originalidade dos que afirmam: "Se não fizermos o nosso trabalho, ninguém o fará por nós", "Não é possível continuarmos a viver acima dos nossos recursos", "O Estado não pode consumir a riqueza criada pela sociedade", "Não devemos gastar hoje o que as gerações futuras vão ter de pagar", "Temos de crescer mais".
O mais perturbador nesta crise feita de muitas crises é a estupidez do discurso sobre ela. Essa estupidez manifesta-se sob várias formas. Há a estupidez que fala e a estupidez que faz; a estupidez doutoral e a estupidez analfabeta. Há a estupidez imoral e a estupidez moralista; a estupidez irresponsável e a estupidez grave. Há a estupidez culpada e a estupidez inocente; a estupidez delirante e a estupidez sensata. Há a estupidez enciclopédica e a estupidez especializada; a estupidez juvenil e a estupidez senil. Há a estupidez individual e a estupidez colectiva; a estupidez tola e a estupidez espertalhona. Todos estes tipos de estupidez têm em comum cinco princípios. Primeiro: o que eu digo não importa, o que importa é ser eu a dizê-lo. Segundo: o que eu digo é um íman que repele qualquer partícula de pensamento. Terceiro: o que eu digo é tão estúpido que torna inverosímil que o seja tanto. Quarto: o que eu digo é tão banal que toda a gente pode estar de acordo. Quinto: o que eu digo salva.
Esta estupidez heteronímica não compreende que a doença não se cura com aquilo que a causou. E o que a causou foi a mistura de estupidez, contrafacção, marketing, competição, tecnologia, corrupção, lucro, violência e narcisismo, que grita: "Tens de ganhar, tens de destruir o outro, tens de ser o primeiro em tudo. Dinheiro é poder e poder é futuro. Se não tiveres muito dinheiro e muito sucesso, és um falhado." Nos EUA de Bush ou no Portugal do BPN, na Europa de Rompuy e Barroso ou na Itália de Berlusconi, na China comunisto-capitalista ou na Argentina do currency board, foi este o combustível que ateou a fogueira.
De tanto se falar em 'tragédia', e tendo encontrado na Grécia do século XXI, gastadora e fantasista, um dos palcos dela, confunde-se 'agora' e 'ágora', julgando que Ésquilo, Sófocles e Eurípedes continuam a ser os seus trágicos. Alguns, para falar da Europa toda, acrescentam Shakespeare. Mas precipitam-se e enganam-se. Para que a 'tragédia' de hoje estivesse à altura dos antigos mestres dela era preciso haver a grande voz que falta em tudo isto: a que desse voz à cólera e à justiça; a que gritasse pelo crime e pelo castigo; a que falasse de um grande destino, de uma grande razão, de uma grande revolta, de uma grande esperança. Aqui, só há as pequenas vozes da voracidade e da vigarice.
Nestes dias em que tudo se torna menos do que foi, as 'tragédias' são os dramas de quem não tem dinheiro para viver. Mas até esses, pela sua impotência na insurreição, transformam a dívida e o penhor em lamento e resignação. Aqui, não escutamos as vozes das tragédias de Sófocles ou de Shakespeare. Ouvimos as dos romances de Balzac, que parecem jornais dos nossos dias de sol sombrio.
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José Manuel dos Santos (FONTE: EXPRESSO)
Estes dramas tristes e tímidos anestesiam e paralisam. Sobre eles e o seu murmúrio inaudível ouve-se a voz da farsa global e da estupidez que a conduz. Não há uma ideia a que se possa dar esse nome. Não há uma análise a que se junte uma descoberta. Tudo é repetição e resto. Tudo se escuta, nada se retém, senão o tédio de ter escutado aquilo que não adianta nem atrasa. Tudo o que levou ao desastre continua igual ao que era. Enquanto prossegue o espectáculo da avidez que mata a galinha e do impudor que a quer continuar a pôr ovos de ouro, ensaiamos um marcar - passo que, dando-nos a sensação de movimento, não é marcha nem avanço. Esta é a hora dos fantasmas: assistimos ao desfile dos mesmos rostos mortos, num filme que acelera a sua passagem, tentando, em vão, dar-lhes um simulacro de vida.
jmdossantos@netcabo.pt
colunista regular do "Actual"
Texto publicado na edição do Actual de 8 de Maio de 2010
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